sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

O tempo

Dali

Era uma tarde fria e cinzenta de inverno, absurdamente mórbida, se assim possa existir. Mergulhado na mais completa solidão, como uma jubilosa estrela esquecida, ele permanecia parado, letárgico como nunca, olhando vago pela janela de um velho sobrado. Via pássaros, sim! eram pombos, inconvenientes, projetando as cabeças para frente repetitivamente, catando migalhas. Duvidasse houvera outra tarde tão triste quanto aquela.

Provido da mais crua realidade, resumia-se a sua própria insignificância, estava fadado àquilo. Sem amigos ou qualquer outra forma de vida - mesmo um gatinho manhoso, ideal para indivíduos sozinhos – que lhe fizesse sentido para continuar a jornada angustiante, era tolhido por pensamentos devastadores, que o levariam para o precipício.


Ainda naquela mesma tarde, que tarde obscura, como era odiosa. O homem no seu estado mais estático observando os pássaros vívidos, porém não mais alegres, encheu-se do pulmão com o ar quente dos seus cigarros que dia após dia fazia-lhe percorrer dois quarteirões. O cômodo que ocupava invadiu-se de uma nuvem espessa provocada pelos seus tragos ansiosos, ele, que exalava rabugice, barrufava os seus cálidos cigarros que aqueciam-lhe naquele tempo ártico, porém, inúteis de lhe oferecer afago. O seu semblante revelava isso.

De perfil, entre móveis de maneira nobre, quem sabe nogueira ou cedro, antíquos, imantados sob uma fina camada de poeira, num âmbito pouco iluminado, com as sombras distorcidas pela luz deficiente e aquém de ser uma mobília alegre e vivaz, podia-se ver aquele homem de rosto anguloso, nariz reto, irritante, incapaz de matar um inseto se tal tarefa lhe fosse incumbida. Estava ali, inerte, diante de sua covardia.

Fatalmente já houveram tardes de domingo bem mais cheias de vida que aquela, de um azul encantador no céu contrastando com um sol imensamente amarelo, uma pintura, uma pincelada primaz. E assim, na insipidez daquele dia onde as famílias recolhiam-se diante do frio, poucos se atreveriam a vagar pela cidade. Vez por outra, em longos intervalos de tempo, os pombos da praça que davam vista a janela do velho sobrado afugentavam-se pelos transeuntes despreocupados. O dia assumira a qualidade do tempo, apático, dessaturado. E assim também o fizera o homem.

Contudo, sabia-se que em outro tempo fora feliz, porque aquela sombra não teria nascido com ele, não fazia parte de si, tinha que ser, devia ser assim com todos e certamente o seria com aquele homem. O que teria lhe acontecido, o que já teria vivido, sim, pois não era jovem o suficiente para privar-se de experiências, era um homem de meia idade, já vivera conflitos, decepções decerto, amores, percas. Poderia um dia estar reunido entre amigos e triunfado intensamente de amor fraternal, ouvido música antiga, bebido um vinho de uma garrafa empoeirada, compartilhado as lágrimas lambendo seus rostos translúcidos de felicidade incontida. Teria sido um jovem obstinado, embalado pelo vento, que sabia degustar o sabor dos frutos, dos vinhos, correndo, atropelando-se, absorvido por emoções magníficas. E agora, mergulhado nesse breu, nas profundezas dessa floresta morta, encrustada de árvores espinhosas e todo tipo de animais noturnos, onde nunca floresceriam as mesmas emoções que o acompanhavam na mocidade.

De repente, a chuva, uma brusca queda de água do céu cinzento, um temporal, uma tempestade. Os pombos da praça escondiam-se debaixo das marquises enquanto aquelas nuvens se desmanchavam e lavavam a rua. O homem foi absorvido por aquele momento, como se a chuva estivesse lavando-lhe a alma, estivesse lavando a si mesmo, e assim criara-se uma nuvem em seus olhos também, desmanchara-se em lágrimas, pois lembrava da sua infância, correndo na chuva, as poças de lama, os pequenos riachos à beira da calçada, o cheiro de terra molhado, tudo aquilo lhe transportava para uma atmosfera que jamais voltaria, a época em que fora mais feliz, porque é assim, na infância é tudo mais claro, simples, divertido, contenta-se com pouco, é tudo mais bonito, o orvalho dominando a sebe, o canto dos pássaros, o pôr do sol, o doce mais doce, as traquinagens, os devaneios.

Ele sucumbia com a chuva, sabia que não podia recuperar aquilo, lembrava da sua vida de agora, lembrava que não era feliz, que não tinha mais amigos, que era frio, que era mole como aquela água, que era fraco. Sabia que o mundo não fazia parte dele, ou que ele não pertencia aquele mundo, era difícil de compreender, de conceber tais questões, pois ele mesmo não sabia o que pensar, não tinha se encontrado, nem mesmo sabia porque vivia daquele modo. Esquecera-se, fazia tanto tempo que se quer ocorria-lhe o motivo, a razão de penar daquela forma, encolher, diminuir-se ao longo dos tempos, não, não sabia.

Talvez tivesse perdido o rumo - como barco em tempestade, os lemes se quebraram, a popa afundava, o marinheiro desesperando-se (afundou! afundou!) e atirando-se ao mar sem pensar, sabendo que ninguém poderia imiscuir-se, que ninguém poderia salva-lo – e se entregado às drogas do mundo, à covardia, ao medo, contentando-se com o que a vida lhe oferecia, perdera a ambição, perdera aquele desatino que o embalava, que soprava como vento forte, um ciclone, uma varredura pelos seus desejos, perdera sua austeridade, sua jactância, seus adjetivos superlativos da juventude, perdera aquilo tudo, rendeu-se, rendeu-se sem questionamentos, tão facilmente, despropositadamente, rendeu-se porque foi fraco, porque não soubera conduzir a sua vida, rendeu-se como aquele dia foi rendido pelo frio, pelo cinza, sem lutar, sem lutar.

E a chuva cessou-se tão repentinamente como iniciara-se, e o homem que relembrava a sua felicidade, tentando montar as peças que o teriam levado àquele estado, como se monta um quebra-cabeças, tentando descobrir porque abandonara tudo e emaranhara-se na sombra, também encerrou-se, secou as lágrimas como as águas secaram do céu. E os pássaros saíram debaixo das marquises e voaram, voaram para onde lhes eram mais conveniente, à procura de um local seco, quente e voando refletiam nas poças formadas pela água da chuva. E a vidraça da janela também refletia o homem.

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