sábado, 15 de agosto de 2009

Saudade

Saudade não é um sentimento de distância, é um sentimento de ausência. Não sentir saudades é falta de ausência ou muita distância?

Todo mundo é colorido

Para mim que tenho a maioria das roupas em tons escuros, exceto as brancas e étnicas, é divertido ver as combinações de cores que as pessoas usam em Melbourne. Nem é preciso se concentrar para encontrar alguém usando sapatos vermelhos, meias verdes, saia preta, camisa marrom, cachecol amarelo e chapéu rosa – sem contar na bolsa azul; mesmo os velhinhos, com seus moletons em diversos tons de azul, verde e rosa. É comum, eles são assim. No trânsito, carros incrivelmente cintilantes exibem suas cores várias – todos os tons de azul são encontráveis.

A impressão é que a cidade parou na gravação de um filme sci-fi oitentista. É muita cor, muita cor. Aí você pára e imagina... onde eles compram todas essas roupas ululando suas matizes saturadas? Resposta: em qualquer lugar. Na loja de sapatos excêntricos, porque eles têm lojas exóticas para tudo; nas lojas de departamento, nas feiras livres, nos outlets – ainda não vi camelôs (do mercado informal, bem a la Edson Gomes). Que bom!

Incrível é pensar que estamos no inverno e talvez essa seja uma forma de alegrar o clima gélido. A próxima estação já vem dando as caras – as árvores ganharão folhas e flores e a polinização dominará a cidade. Os jardins brotarão suas portentosas e entusiasmadas cores aos cachos. E o que será que todo esse povo vai vestir. É pagar pra ver.

Sobre ser estrangeiro




A menos que me perguntem algo e eu não despeje o peso do meu acento latino sobre o ouvido do questionador, serei apenas eu, um estrangeiro, mas de nenhuma nacionalidade. Serei sempre o que sou ou o que quer ser visto. Serei australiano e fui australiano quando orientei a moça como chegar à Bourke St; serei brasileiro como fui brasileiro quando conversei amenidades com a recepcionista da escola, que também é de lá; e serei peruano como fui peruano quando contei minha experiência em seu país, hablando em español, a um estudante dalí.

Ser estrangeiro não é uma questão geográfica, não é latitude nem longitude, não é cartesiano. Ser estrangeiro é andar na contra mão do senso comum, é simplesmente viver como uma folha que cai d’uma árvore e toma seu rumo – totalmente desconhecido.

Sobre se sentir só







Estar só não é nenhuma novidade. Viver em comunidade, família, amigos e ter uma conturbada agenda social não lhe põe no patamar de pessoa não só – porque não há uma palavra para isso, mas uma imagem. Estar sufocado disso é mais uma forma de isolamento.

Entretanto, estar só do outro lado do globo é uma questão além das já vomitadas propositivas. Estar só num clima oposto ao que sempre viveu e numa língua que se perde entre os dentes, numa cultura que nada se parece com a de origem, aí é outro tipo de solidão. É solidão só – sem família e amigos e as chatices de todos os dias. É estar só e aberto para novos amigos e família e chatices.

Os amigos serão igualmente chatos, mas necessários; os eventos saltando da agenda serão os mesmos, pelo menos até se tornarem comuns. E o novo novo será mudar de ares e viajar para um lugar que ao invés de enrolar a língua nos dentes, se engasgue com palavras de sons guturais.

A partir daí, o novo se tornará velho e o ciclo continuará dançando seus movimentos bamboleantes.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Hit the road, Zé!















Quando acaba o estado de suspensão e o irremediável já é irremediável, não há mais o que fazer. Obedecer aos instintos selvagens da natureza humana é sua única possibilidade, não há como fugir, a partir daí é só enfrentar inimigos e sombras e travar a batalha. Seguir. O passo inicial e contumaz a todo homem predestinado. A ação de agora refletirá, inabalável, o homem do amanhã, construindo monte sobre monte, peça sobre peça, sentimento sobre sentimento a cada movimento do presente, ao tempo que constrói um passado, para enfim consolidar o que se pode chamar futuro – paradoxalmente.

Um futuro inesperado que segue cegamente os seus próprios pés – esse é o meu estado, essa é a minha jornada. Um cidadão do mundo com ticket só de ida; retornar já é outra partida.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Ela

























Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Àquela altura, o quarto atrás do seu calcanhar, escapara definitivamente de alcance. Do lado de fora, na rua, caía uma chuva, indômita, gris, que frutificava as propriedades sinistras do lusco-fusco. Num rompante, atravessou de uma calçada a outra se desviando dos carros congestionados e caminhou precipitada sob as marquises.

O café, atabalhoado de gente, parecia não se incomodar com a imagem da mulher revirando sua bolsa, arrancando lá de dentro um maço de cigarros amassado e molhado. Trêmula - de frio ou por conseqüência da decisão tomada há poucos instantes –, com a carranca pálida, manchada de maquiagem, mal sustentava o cigarro. A boca, miúda e fina – um traço, borrada da cor que deveria ser dona, tragava e lançava lufadas mortiças. Pediu e serviu-se de café com uísque. A luz, débil, que pendia sobre sua cabeça, estampava no cenho, mais acentuada, as expressões dolentes.


A noite rompeu imperiosa em sombras e néons. A calçada, molhada e suja, refletindo os faróis, era ferida com o pisar do salto trôpego, escarlate, envernizado. Os pedestres se esbarravam inevitavelmente. A mulher passava alheia a isso, heterogênea à massa. Sua dor não vestia seu corpo e ela cambaleava rua adiante. Seu trote, pasmódico, mole, não escondia - pelo contrário, alarmava a curva desenhada em seu dorso, arquejado, inflexível. Que mulher doente! Pensaria qualquer um se a notassem.


Uma mão se estende e prontamente pára o ônibus. Sobe. Parte saculejante o transporte carregando os conflitos e alegrias dos corpos de seus usuários. Para ela, o ônibus parece se arrastar. A criança, debruçada no banco da frente, exibe um sorriso que não pode ser para mais ninguém senão ela. O ônibus desce vertiginosamente a ladeira. Ela sente um gelo na barriga e chora.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A dor de existir²














Podia ser quem quisesse. Um poeta malogrado em sua escrita logorréica à sua amada, uma criança de fala e movimentos débeis, um homem atazanado em seus próprios conflitos, a própria elegância e cortesia ou ainda um fracasso. Ele só não podia ser apenas uma coisa interinamente. Oscilava como o tempo que em suas frações menores que milésimos, mais infames que milésimos, faz um camaleão incorporar suas matizes, o vento volver a curva e um pensamento vagar em despropósito.

Um homem e um distúrbio. Sim, tinha caráter; sim, era digno. Mas algo o afetava. Sofria irrefletidamente. Sensibilizava-se de quase tudo, embora, por instantes, revelava-se sisudo e severo. Tinha bom senso de humor, ótimo senso de humor, podia irradiar vendo um cachorrinho auferir-lhe gracejos; mas de vez por outra, no meio de um largo sorriso, suas maçãs se lavavam de um líquido choroso que, todavia não eram alegres. Não, não eram alegres. Mesmo assim, com toda a crise, podia ser quem quisesse: o poeta e o menino, a elegância e o fracasso.

Estava envolvido numa atmosfera de miasma, contaminando tudo a sua volta, e para tanto só bastava-lhe imaginar. No seu bojo, não suportava ser quem era e com um suspiro enfadonho, e um pesar no semblante, com os cantos tortos da boca, desabafava:

- Pra que tanta sensibilidade se a abjeção humana é bem mais fascinante?

Dizia isso no propósito de diminuir sua carga, mas só conseguia perceber o quanto estava doente, o quanto estava afetado, e o peso da sua consciência parecia cair sobre si. Quando afundava o peso do seu corpo sobre os joelhos, envergando-se, era como um 'c', um 'c' de carência, e se curvando mais um pouco, um 's', um 's' de solidão, sucumbindo com o corpo, o seu desacordo.

Apesar dos inúmeros amigos e ciclos que freqüentava, seu vazio avançava à obscuridade, à devastação. Era insólito. Bem que por diversas vezes tentou se livrar da doença, mas seu estado de espírito não lhe permitia. Sabia que não havia cura, porque não haveria uma cura para sua crise de existência, e sabendo disso, progride tortuosa a vida.

Por que ser o que quiser, se no fim não há uma razão? A vida se desvela complexa, incógnita, paradoxal. Um momento que se tem uma única vez e pode durar um dia, meia-hora ou cem anos. Mas de qualquer forma, todo esse tempo é magnificamente igual, o viver, o existir, isso sim é verdadeiramente o sentido da simples permanência. Ah, pobre do homem, pobre do homem que como esse, esteja disposto a ser o que queira e ainda tente descobrir razão de viver.

(²) - Essa é uma uma nova versão do primeiro conto que postei aqui. Para conferir o original é só ir ao primeiro post do blog. Algumas correções e corte das sobras que só faziam empobrecer o texto... quem sabe melhorou agora?